No livro Minhas Coordenadas
- Clara Kardonsky Politi
- há 6 dias
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No livro Minhas Coordenadas, eu, Clara Kardonsky Politi aos 73 anos, volto aos lugares por onde passei, e àquilo que fui nesses lugares, a partir do exercício da memória e a pesquisa. Porque somos memória. Somos memória como sujeitos históricos, em devir constante entre uma origem mais ou menos certa e um destino sempre incerto para o qual infalivelmente nós vamos. Somos o testemunho vivo da nossa própria história e, a todo o momento, de alguma forma, estamos nos lembrando de algo: a memória é um processo de criação constante.
Porque recordar é também o ato de passar pelo coração novamente as experiências. E nesse gesto sensível, mas também intencional, do exercício de memória, estou reconstruindo minha história em “Minhas Coordenadas”. De minha terra natal, Villa Domínguez em Argentina, lugar onde chegaram meus avos judeus através de uma imigração para achar “a terra da liberdade”, de essa pequena cidade, para Israel, de lá para o Brasil, para o Peru, para o México, Quênia, e novamente para a Argentina e hoje morando em São Paulo, lugares onde eu estava construindo minha vida e minha família. Minha vida de mulher, judia, militante, mãe e esposa. De filha a avó. Do campo às barricadas estudantis, do kibutz aos palácios dos czares, desde a universidade à militância nos bairros periféricos, nos espaços de trabalho imigrante. E sempre a convicção da luta pelos direitos humanos.
E assim surgem imagens, histórias, vozes, sentimentos e sensações que representam um recorte daquilo que era e o que é. Toda vez que eu recordo, eu escolho. E é assim que olhando para o próprio passado parece desdobrar, diante de si e do leitor, uma série de perguntas: o que é que se deseja ver e de quais imagens se decide desviar o olhar? Quais são os interesses que alimentam a memória? O que se escolhe transmitir, de que forma e porquê? Em resposta a estas perguntas a memória encontra o lugar de onde começa a construir sua história, e é assim que relembrar torna-se um ato político.
A origem de quem eu sou deve ser rastreada na Europa Oriental. Dali emigraram meus avós maternos e paternos, fugindo da perseguição sofrida pelos judeus nas mãos do czar Alexandre III. Meu avô paterno, Moisés Kardonsky, nascido no final do século 19, veio da Bessarábia para um terreno em San Gregorio, a 15 km de Villa Domínguez, e sua esposa, minha avó, Dora Kafeisider, que nasceu cinco anos depois e provavelmente veio da área austro-húngara. Quanto aos meus avós maternos, Jaime Sadigursky e Luisa Krupnik, nascidos em 1903, no alvorecer do novo século,chegaram à Argentina vindos da Bessarábia em 1910, minha avó ainda criança. Os quatro faziam parte dos mais de dois milhões de judeus que, perseguidos por sangrentas ondas de pogroms, durante mais de três anos durante o reinado de Alexandre III, devastaram várias cidades do império. O pior desses massacres, precisamente, seria desencadeado entre 1903 e 1906 na área de Chisinau, na Bessarábia, dirigido por sacerdotes da igreja ortodoxa sob o lema “Mate os Judeus”.
Mudei-me para Santa Fé dois meses antes do meu aniversário de 18 anos. Era janeiro de 1969 e tinha me matriculado para estudar Engenharia Química na Universidad Nacional del Litoral. Hoje acho que poderia definir isso, minha primeira mudança fora de casa, como o primeiro grande salto quantitativo e qualitativo em minha vida. Foi o despertar, da noite para o dia, em uma grande capital provincial.
A Universidade de Química ocupava um quarteirão inteiro. De um lado estava a universidade; do outro, o prédio de Ensino Técnico. A dois quarteirões ficava a Faculdade de Direito. Entre os dois prédios ficava o restaurante universitário, onde era muito barato comer. Almoçávamos e jantávamos lá todos os dias. Tudo naquela área era barulho e estudantes, e o restaurante era o nosso ponto de encontro. Era onde fazíamos amizades e, sobretudo, onde começaram os movimentos universitários, onde surgiam contatos e propostas de adesão ao movimento. Ao calor das refeições ia se acendendo o fogo da militância...
Por causa de minha participação politica tive que sair de Argentina. Com uns amigos fomos a Israel a trabalhar num kibutz, foi imediatamente depois da guerra de 1973. Depois de ficar um ano no kibutz decidi que queria terminar a carreira de Engenheira Química, saí do kibutz para aperfeiçoar o idioma hebraico e para finais de 1975 já estava trabalhando numa fabrica em Beer-Sheva.
Em Israel conheci a Maurice Politi que depois se tornaria meu marido. Maurice também vinha da luta política, brasileiro esteve preso e logo foi expulso do pais.
Depois de nos casarmos, em 1977, fomos morar no kibutz Beit Kamlá nasceu nosso filho Yonatan em 1979 e em 1980, quando foi decretada a amnistia política em Brasil, saímos de Israel e viemos morar em São Paulo onde nasceu nosso segundo filho, Daniel.
Foi em São Paulo que Maurice começou a trabalhar numa companhia Suíça e com eles fizemos uma vida de nômades mudando para vários países, moramos em Peru por 5 anos logo em Mexico por 4 anos, logo em Quênia por outros 5 anos de lá para Argentina onde ficamos por 5 anos e finalmente Brasil como último posto de trabalho antes da aposentadoria do Maurice.
Toda essa trajetória foi o que quis contar como um legado para minha família e para meus amigos, no livro “Minhas Coordenadas”.
Biografia da Autora
Orelha da capa
Clara Kardonsky Politi nasceu em 1951 em Villa Domínguez, assentamento da principal colônia judaica de Entre Ríos, Argentina. Estudou Engenharia Química na Universidad Nacional del Litoral, entre 1969 e 1973. Finalizou seus estudos em Beer Sheva, Israel, em 1975.
Morou 4 anos no Kibutz Beit Kama, de onde migrou para o Brasil, em 1980. Desde então a jornada da sua vida transcorreu entre viagens e migrações: do Brasil para o Peru, em 1985, do Peru para o México, em 1989, do México para o Quênia, em 1994, do Quênia de volta à Argentina, em 1998, e da Argentina novamente para o Brasil, em 2006, onde reside até hoje. Criou seus dois filhos, Yonatan e Daniel, nascidos em Israel e no Brasil, respectivamente. É Bacharel em História da Arte pela Universidade Anahuac da Cidade do México, professora de espanhol como segunda língua pela Universidade Menéndez Pelayo, Santander, Espanha e ensinou espanhol na Universidade Americana de Nairóbi, no Quênia.
Integrou diversas organizações de defesa dos Direitos Humanos e associações de imigrantes, tendo colaborado para a elaboração da lei de imigrações na cidade de São Paulo, regulamentada em 2016.
Como representante da população imigrante atuou no Conselho Participativo Municipal dois mandatos. Também manteve participação ativa em várias organizações de judeus progressistas, tendo sido fundadora de algumas delas.
Viajante, estudante e militante incansável, Clara se considera uma cidadã do mundo.
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